Sunday, September 30, 2007

Capítulo IX - A Ópera

(...)
— Esta peça — concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronómica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: «Muitos são os chamados, poucos os escolhidos». Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
— Tem graça...
— Graça? — bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: — Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há-de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o , e do fez-se , etc. Este cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...


Dom Casmurro
Machado de Assis

Monday, September 24, 2007

Retrato de Regina num quimono preto

(a Steve Hawley)

Pouco a ver ou
a dizer daqueles

seios de Alechinsky –
as coisas do mundo

a argila quente do dia

Pouco a ver ou
a dizer daquele

queixo de Rodchenko
– um eu-te-amo de

delírio reencontrado

(um pouco a língua e
a nuca por completo)

Ao redor daquelas
patas de Tanguy

só cabeça, tronco
e membros


Jorge Lúcio de Campos

Thursday, September 20, 2007

Hope is the thing with feathers

Hope is the thing with feathers
That perches in the soul,
And sings the tune without the words,
And never stops at all,

And sweetest in the gale is heard;
And sore must be the storm
That could abash the little bird
That kept so many warm.

I’ve heard it in the chillest land,
And on the strangest sea;
Yet, never, in extremity,
It asked a crumb of me.


Emily Dickinson

Tuesday, September 18, 2007

ano lunar

ano lunar três mil x;
só escrevo silêncios.

a voz calou-se-me em tinta
muda

(só mais uma letra)
tudo o que quero dizer
não tem palavras


Luís Pedro Ferreira

Monday, September 17, 2007

A MÃO AO ASSINAR ESTE PAPEL

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.

A mão soberana chega até um ombro descaído
e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.


Dylan Thomas
Tradução: Fernando Guimarães

Thursday, September 13, 2007

Girl In A Miniskirt Reading The Bible Outside My Window

Sunday, I am eating a
grapefruit, church is over at the Russian
Orthadox to the
west.

she is dark
of Eastern descent,
large brown eyes look up from the Bible
then down. a small red and black
Bible, and as she reads
her legs keep moving, moving,
she is doing a slow rythmic dance
reading the Bible. . .

long gold earrings;
2 gold bracelets on each arm,
and it's a mini-suit, I suppose,
the cloth hugs her body,
the lightest of tans is that cloth,
she twists this way and that,
long yellow legs warm in the sun. . .

there is no escaping her being
there is no desire to. . .

my radio is playing symphonic music
that she cannot hear
but her movements coincide exactly
to the rythms of the
symphony. . .

she is dark, she is dark
she is reading about God.
I am God.

Charles Bukowski