Thursday, October 26, 2006

Soneto de Aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

Vinicius de Moraes

Friday, October 20, 2006

O Dedo Os Dedos

O dedo mais que dedo dos meus dedos
este undécimo dedo dos meus dedos
clarividente cego entre os meus dedos
conhece-te melhor do que os meus dedos

Percorre-te por dentro ?Encontra dedos
os dedos que por dentro de ti dedos
mais dentes são gengivas do que dedos
mais palatos em fogo do que dedos

E súbito pergunto ?Que é dos dedos
ó mais unhas por fora do que dedos
ó mais luva por dentro do que dedos

Mas eis de novo dedos dedos dedos
apertando em seus dedos ah tão dedos
o dedo mais que dedo dos meus dedos

David Mourão-Ferreira

Thursday, October 19, 2006

Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas

Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas
e perfuma-as com o odor da sua lenta vulva
Ela tanto pode ser uma fêmea da lua como uma rapariga solar
Nas suas ancas ondula um indolente outono e nos seus seios desponta
??????????????????????????????????????????????????????[a primavera

Eu vejo-a e não a vejo na brancura da página
porque ela flutua vagamente na distância como uma lua no meio-dia
Mares bosques clareiras fontes em delicadas e delgadas linhas
fluem com o fulgor dessa mulher azul
As palavras caminham com o ritmo fresco dos seus pés descalços
sobre uma praia fulva de conchinhas brancas
O seu hálito doce embriaga as leves sílabas
e a doçura do seu lábio impregna as frases nuas
Ela é a presença ausente corpo de aragem viva
e a sua felicidade é tão vaga como vaga a sua longínqua imagem

António Ramos Rosa

Tuesday, October 17, 2006

e ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

Friday, October 13, 2006

Natureza Morta

O homem está deitado de
Costas tt nu. A mulher senta-se

Sobre ele olhando-o de frente
As mãos assentes na cama

Com movimentos para cima e
Para baixo tt a respira-

Ção cada vez mais fremente

Jorge Sousa Braga

Thursday, October 05, 2006

A una moneda

Fría y tormentosa la noche que zarpé de Montevideo.
Al doblar el Cerro,
tiré desde la cubierta más alta
una moneda que brilló y se anegó en las aguas barrosas,
una cosa de luz que arrebataron el tiempo y la tiniebla.
Tuve la sensación de haber cometido un acto irrevocable,
de agregar a la historia del planeta
dos series incesantes, paralelas, quizá infinitas:
mi destino, hecho de zozobra, de amor y de vanas vicisitudes,
y el de aquel disco de metal
que las aguas darían al blando abismo
o a los remotos mares que aún roen
despojos del sajón y del fenicio.
A cada instante de mi sueño o de mi vigilia
corresponde otro de la ciega moneda.
A veces he sentido remordimiento
y otras envidia,
de ti que estás, como nosotros, en el tiempo y su laberinto
y que no lo sabes.

Jorge Luís Borges

Monday, October 02, 2006

Se queres....

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira

Sunday, October 01, 2006

Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

Sophia de Mello Breyner Andresen